Un réel pour le XXI sciècle
ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE
IX Congresso da AMP • 14-18 abril 2014 • Paris • Palais des Congrès • www.wapol.org

TEXTOS DE ORIENTAÇÃO
Savoir y faire
por Mauricio Tarrab

Mauricio TarrabMatériel-ne-ment e a função do semblante
De que ordem decorrem o saber e o fazer implicados na fórmula de Lacan: savoir- y-faire (saber-fazer-ali)?[1]

Não se trata do saber-fazer do artesão, do ofício, que se pode transmitir de mestre a aprendiz como uma "mestria", no tocante à matéria sobre a qual se opera. Também não se trata do fazer grego, o prattein que, na dialética teoria/prática, supõe um agir que imprime uma forma ideal à realidade material mediante um forçamento. Tampouco se trata da modelização característica do funcionamento da ciência: "A metáfora que se usa para o que se chama o acesso ao real, é o modelo. Lord Kelvin, por exemplo, considerava que a ciência era algo em que funcionava um modelo, permitindo prever quais seriam os resultados do funcionamento do real"[2] .

Distinguindo-se por completo dessas três modalidades de combinações entre saber e fazer, o saber-fazer-ali remete a uma questão fundamental: como alcançar o real? Esta é, com efeito, a preocupação de Lacan, quando ele enuncia: "savoir-y faire com seu sinthoma, este é o final da análise"[3]. Sua preocupação não é outra senão o embuste (escroquerie) do semblante: em uma análise, como podemos ter acesso ao real quando real e semblantes são radicalmente disjuntos e quando tudo "o que não está fundamentado na matéria é um embuste material-não-mente"[4].

Tal como o próprio sintoma e outras tendências da época, o savoir-y-faire é uma maneira de estender pontes entre o sentido e o real, de modo a obter, por meio do semblante, pelo menos alguns pedaços desse real. "A abordagem do real é estreita. E é por assombrá-la que a psicanálise se perfila"[5]. No último ensino de Lacan, estamos longe da aspiração científica da "Nota aos italianos", na qual se operaria sobre um saber no real a fim de determinar esse real de nova maneira, semelhantemente à ciência [6]. O que resta, não é da ordem de um saber manipulável no real, mas da ordem do sintoma que conserva um sentido no real. Savoir-y-faire com o sinthoma...[7]. "Não leva longe", diz Lacan, "é, porém, praticável no final da análise. Uma vez que isso tem muito mais a ver com o fazer do que com o pensar, observa Xavier Esqué, o funcionamento do sintoma no final da análise, o que ele tem de praticável é um modo de sair da debilidade do pensamento, uma forma de passe, uma maneira de fazer com o vazio" [8].

A debilidade do saber
No Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, Lacan põe em série savoir-y-faire, savoir-faire e savoir-y-être (saber estar ali): "[...] o que a descoberta freudiana enuncia é que podemos estar nisso sem saber que estamos, e também que, ao nos julgarmos mais certos de nos proteger desse estar aí, ao nos julgarmos noutro lugar, num outro saber, estamos nisso em cheio. É o que diz a psicanálise: estamos aí sem saber"[9]. Em seguida, Lacan se pergunta: o saber inconsciente tem condições de encarar o real? Com efeito, diz Miller [10], "na análise, o saber inconsciente, ainda que extraído da ignorância, é sem dúvida débil por ser, em primeiro lugar, um 'não saber fazer ali com' (ne pas savoir-y-faire avec), principalmente com a falha do sexo", observa Patrick Monribot, por sua vez. Sim, o saber inconsciente é débil em relação ao real. Essa debilidade é uma via sem saída que necessita de uma passagem forçada do inconsciente para o sintoma, única via efetivamente praticável. Assim, é possível esboçar-se um saber estar ali no inconsciente. Em outras palavras: saber ser tolo do inconsciente, saber-fazer-ali com o sintoma. Se "reduzir toda invenção ao sinthoma [11]" é a orientação da experiência analítica, então não há outra saída ao final de uma análise a não ser saber-fazer-ali com o que resta.

Virar-se com o incurável
A recente tradução para o espanhol de savoir-y-faire como saber haver-se com evidencia duas de suas vertentes. A primeira indica o uso do sintoma: doravante, o analisado pode utilizar o que, desde sempre, esteve do lado da dificuldade, do obstáculo e, por fim, pode tornar-se o instrumento de uma prática. Servir-se do sintoma preferencialmente a permanecer para sempre o instrumento de seu pathos. A segunda vertente põe em evidência o incurável, pois o sintoma, mesmo que reduzido a um signo, continua escrevendo-se. Resta, então, virar-se com ele. Em outras palavras: saber fazer com o sintoma que se é hic et nunc. Esse é, também, um modo de tomar distância dele. "Como isso se pratica?", pergunta-se Lacan, embora nos tenha dado duas indicações nesse sentido: assim como se pode saber fazer com o parceiro sexual e também como sabemos fazer com nossa própria imagem[12]. Nenhuma mestria nem genialidade na matéria: simplesmente, chegar a virar-se com isso.

Esse savoir-y-faire pode, também, ser concebido como o avesso da relação do neurótico com a castração, porquanto este faz sua a castração do Outro para disso extrair sentido e sofrimento. Muito ao contrário, esse saber-fazer-ali poderia, antes, inspirar-se nas proposições que Lacan retoma do Eclesiastes concernentes ao "velho rei que não via contradição entre ser o rei da sabedoria e possuir um harem. Tudo é vaidade, sem dúvida [...] desfruta da mulher a quem amas. Ou seja, faz uma aliança desse oco, desse vazio que está no centro de teu ser. Não existe próximo a não ser esse mesmo vazio que há em ti, teu próprio vazio" [13]. Uma vez que esse vazio é o lugar onde o sintoma não deixou de inscrever seu pathos e onde o sinthoma advém como nó, será sempre necessário fazer alguma coisa para haver-se com o incurável. Mais vale sabê-lo...


Tradução: Tânia Regina Anchite Martins

  1. N.T.: Tradução nossa
  2. Lacan, J. O Seminário 24: l'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre. Aula de 16 de novembro de 1976. Inédito. Ornicar? n. 12/13, p. 7, dez. 1977. Citação: "A metáfora que se usa para o que se chama acesso ao real, é o modelo. Lord Kelvin, por exemplo, considerava que a ciência era alguma coisa em que funcionava um modelo, permitindo prever quais seriam os resultados do funcionamento do real".
  3. Lacan, J. O Seminário, livro 24: l'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre, cit.
  4. Matériel-ne-ment, no original. Lacan, J. O Seminário 24: l'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre. Aula de 14 de dezembro de 1976. Inédito.
  5. Lacan, J. Radiophonia, Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 431: "A abordagem do real é estreita. E é por assombrá-la que a psicanálise se perfila".
  6. Lacan, J. Nota italiana, Outros escritos, cit., p. 311.
  7. Lacan, J. Nota italiana. Outros escritos, cit. Aula de 16 de novembro de 1976. Inédito. Ornicar? p. 7.
  8. Esqué, X. O sintoma no final da análise faz-se praticável.* Freudiana, Barcelona, n. 39, p. 75-88, 2004 (texto não traduzido em francês)
  9. Lacan, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 203. Aula de 5 de março de 1969.
  10. Miller, J.-A. O lugar e o laço. Aulas de 6 e 13 de junho de 2001 de 2001. Opção Lacaniana: revista brasileira internacional de psicanálise, n. 35, jan. 2003; e Monribot, P. La passe et Le symptôme. La Cause Freudienne, n. 50, p. 60, fev. 2002
  11. Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 128. Aula de 13 de abril de 1976.
  12. Lacan, J. O Seminário 24: l'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre, cit.
  13. Lacan, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, p. 25, cit. Aula 13 de novembro de 1968.