A noção de causalidade não tem boa reputação no pensamento moderno. Bertrand Russell, em um texto que dá início à reflexão contemporânea sobre o problema, afirma que "A lei da causalidade, [...] como muitas ideias que circulam entre os filósofos, é uma relíquia de uma era desaparecida, sobrevivendo a ela como a monarquia, apenas porque se supõe, erroneamente, que ela não provoque danos"[1].
Hume, na verdade, deu um golpe decisivo no conceito de causa liberando-o do laço com a necessidade. A causalidade, a ligação lógica entre a causa e o efeito, não é demonstrável e a relação entre causa e efeito só pode ser constatada exclusivamente no nível da experiência, ali onde apenas o uso nos prova que a uma determinada causa sempre segue um efeito determinado.
No entanto, é a ele que podemos atribuir o fundamento da noção de causa que Lacan vai buscar quando, em "Posição do inconsciente"[2], ele diz que só a insistência do inconsciente permite "que se apreenda a causa no nível do qual um Hume pretende desentocá-la".
O conceito freudiano sobre o qual Lacan se fundamenta para propor aqui a noção de causa é o Nachträglichkeit, o efeito de retroação, no qual um elemento heterogêneo que Freud definiu como traumático torna-se ativo somente quando, num segundo tempo, ele toma sentido para o sujeito.
Em outras palavras, para Freud, assim como para Hume, a causa permanece exterior ao plano lógico e discursivo e é isso que lhe dá consistência como real. Ao mesmo tempo, a causa, considerada como real e, portanto, fora do sentido, torna-se efetiva apenas quando ela faz sentido na dimensão subjetiva.
Aparece então uma conceituação da causa que não coincide em absoluto com o conceito de causa no discurso científico .
Quando, em neurociências, se pesquisa uma molécula responsável por um comportamento – difundindo no público uma ideia de concretude e de eficácia particular, já que se sabe onde a molécula está e também como tratá-la -, baseiam-se no conceito de causalidade, comum no discurso discurso científico, que é um conceito extensivo generalizado.
A extensão é definida pelo fato de ser partes extra partes, partes separadas umas das outras. A extensão é pura exterioridade, sem consciência, sem pensamento, sem nada que a anime. A física, na verdade - a disciplina que estuda especificamente esta exterioridade (o que ocupa esta exterioridade) -, é uma ciência dos corpos inertes, submetidos à lei fundamental da energia, segundo a qual um corpo está em movimento somente se ele receber do exterior um impulso, ou, se ele está em movimento, parar somente quando encontra um obstáculo exterior a ele.
Quando as neurociências, com todos os seus inegáveis progressos, buscam no cérebro a causa de um comportamento, elas inevitavelmente recaem na busca de uma causa externa (o fato de o cérebro estar localizado na caixa craniana não muda nada, no que diz respeito à definição do partes extra partes).
Inversamente, se nos perguntarmos onde se situa o elemento heterogêneo ou traumático que se ativa no a posteriori com o mecanismo do Nachträglichkeit, a única resposta que podemos dar é que ele não está localizado, que ele não tem coordenadas espaciais, é um encontro sem lugar e é um "mau encontro". Este encontro, contingente, não apenas não tem lugar de encontro, como também não pode simplesmente ser referido a nenhuma coordenada espacial, é um batimento, um esgarçamento da existência no qual o tempo parou.
A causa, em psicanálise, como causa do desejo, não tem caráter extensivo, não está situada em um exterior, porque ela está no Outro. O sujeito vai buscar no Outro a causa de seu próprio desejo e, quando este não é o caso, quando a voz ou o olhar não estão situados no lugar do Outro - que não é um lugar do espaço -, as coisas são mais difíceis, razão pela qual elas tomam a forma do delírio ou de alucinações .
Lacan jogou com essa ideia em uma de suas últimas conferências. Se a liberdade consiste no fato de ter em si sua própria causa, de acordo com a definição aristotélica clássica que percorre, sob diversas formulações, de toda filosofia (ter em si sua própria causa é diferente de ser "causa sui", prerrogativa que Spinoza reservava à substância, a única que ele chamava de Deus ), então, o psicótico é , por definição, o homem livre.
O último ensino de Lacan desestabiliza as distinções estruturais das categorias clínicas, suprimindo os limites que separavam claramente a neurose e a psicose. A loucura, entendida como a impossibilidade de se defrontar com a sexualidade por meio do saber, do logos , da razão, concerne a todos os seres falantes, sem distinção categorial.
A sexualidade, na qual a psicanálise encontra seu próprio real, diferente daquele, extensivo, da ciência, é um campo onde a ligação entre a causa e o efeito está rompido. Em " Posição do inconsciente ", Lacan pensou a causa em referência a uma "razão": a causa perpetua a razão que subordina o sujeito ao efeito do significante. Com a generalização da loucura a todos os seres falantes, essa razão é removida, como se nem sequer falássemos mais do efeito do significante ao qual o sujeito está subordinado.
A tempo suspenso do elemento heterogêneo não encontra uma razão na qual se agarrar, ele vai à deriva, circunscrito, quando possível, por um sinthoma.
Esse momento suspenso sem razão é o hic Rhodus hic salta de nossa clínica, na qual a aposta é fazer de um sinthoma uma razão, não pelo qual viver, mas com o qual (complemento de meio) viver.
Tradução Vera Avellar Ribeiro